GHG Protocol descomplicado
Escopos 1, 2 e 3
9/24/20257 min read


“Três escopos, um inventário — e decisões melhores.”
Você não precisa ser climatólogo para tomar decisões climáticas inteligentes. O que você precisa é de um mapa claro do que a sua organização emite — e de onde isso vem.
O GHG Protocol oferece esse mapa. Ele organiza as emissões em três escopos e, a partir daí, permite priorizar ações, negociar melhor com fornecedores e comprovar resultados com transparência.
Neste artigo, vamos “alfabetizar” sua visão climática: definições simples, como traçar fronteiras, exemplos práticos do Projeto Roda Campeã e por que começar pequeno é a melhor estratégia para ganhar escala com segurança.
Por que o GHG Protocol virou a “língua franca” do clima corporativo
Empresas, ONGs e governos precisam falar a mesma língua quando o assunto é emissões. Sem padrões, cada um mede de um jeito e ninguém se entende.
O GHG Protocol surgiu para padronizar essa conversa. Ele não é uma lei; é um padrão aceito globalmente para medir e reportar emissões de gases de efeito estufa (GEE) em CO₂ equivalente (CO₂e), permitindo comparabilidade, auditoria e melhoria contínua.
O que são os Escopos 1, 2 e 3 — sem jargões
Escopo 1 – Emissões diretas São as emissões que acontecem dentro da sua fronteira operacional, por fontes que você possui ou controla. Ex.: combustão em caldeiras próprias, geradores, frota própria (gasolina, diesel, etanol), gases refrigerantes que vazam de equipamentos sob sua responsabilidade.
Escopo 2 – Emissões de energia comprada É a pegada indireta associada à eletricidade, vapor, aquecimento ou refrigeração que você compra. Mesmo que a emissão aconteça na usina, ela “conta” para você porque viabiliza a sua operação.
Escopo 3 – Outras emissões indiretas na cadeia de valor Tudo o que não é Escopo 1 nem 2 e acontece a montante (fornecedores) e a jusante (uso e fim de vida do que você entrega). Ex.: produção de insumos e equipamentos, transporte terceirizado, viagens a negócios, deslocamento de colaboradores, tratamento de resíduos, uso de produtos por clientes, descarte.
Dica de ouro: o Escopo 3 costuma ser o maior e o mais difícil de medir. É também onde estão as maiores oportunidades de redução via cadeia de valor.
Fronteiras: primeiro decida “o que é meu” (organizacionais), depois “o que entra no inventário” (operacionais)
Antes de calcular, defina fronteiras organizacionais:
Controle operacional: você inclui o que opera/controla, mesmo sem ser dono. É o mais usado por quem quer focar gestão.
Controle financeiro: inclui o que você controla financeiramente.
Participação societária (equity share): você reporta proporcionalmente ao percentual de participação.
Em seguida, defina fronteiras operacionais:
Quais atividades geram Escopo 1, 2 e 3 dentro dessa organização?
Quais categorias de Escopo 3 são relevantes (materiais, transporte, resíduos, viagens, capital fixo, uso do produto etc.)?
Ano-base para comparação (ex.: 2025) e materialidade (o que é relevante para entrar).
Inclua sempre Escopos 1 e 2. Para o Escopo 3, selecione as categorias mais materiais no início — e amplie depois.
Como medir sem complicar: atividade × fator de emissão
O cálculo tem uma lógica simples: Dado de atividade (kWh, litros, km, kg) × Fator de emissão (tCO₂e por unidade) = Emissões (tCO₂e).
A qualidade do inventário depende de:
Dados primários (medidos por você ou pelo fornecedor) vs. dados secundários (médias setoriais, bases públicas).
Fatores de emissão confiáveis e atualizados.
Escopo 2: reportar location-based (média da rede) e market-based (o que você compra, ex.: contratos de renováveis, certificados).
Rastreabilidade e auditoria: documente suposições, lacunas e fontes.
Exemplos práticos: o inventário do Projeto Roda Campeã (estudo de caso para implantação)
Contexto: fábrica social que produz cadeiras de rodas infantis e acessórios de acessibilidade via impressão 3D, e que, na Fase 2, vai reciclar garrafas PET para fabricar filamento.
Escopo 1 (direto)
Frota própria: carros ou utilitários usados para doação/entrega das cadeiras.
Gás/combustíveis em geradores ou aquecedores, se houver.
Gases refrigerantes: eventuais vazamentos de ar-condicionado da fábrica.
Gestão prática: plano de manutenção preventiva, telemetria na frota, direção econômica, troca de refrigerantes por alternativas de menor GWP.
Escopo 2 (energia comprada)
Eletricidade dos parques de impressoras 3D, computadores, iluminação e extrusoras na Fase 2.
Resfriamento ou refrigeração contratados de terceiros, se aplicável.
Gestão prática: eficiência energética (otimizar parâmetros de impressão e ocupação das bandejas), tarifação/horário de ponta, retrofit de iluminação, PPA de energia renovável e/ou certificados (market-based).
Escopo 3 (cadeia de valor)
Montante (upstream):
Capital fixo: impactos na fabricação das impressoras 3D e extrusoras.
Insumos: filamentos (antes da Fase 2), embalagens, peças e componentes.
Transporte terceirizado de materiais e doações de PET.
Deslocamento de colaboradores e viagens a trabalho.
Gerenciamento de resíduos (suportes de impressão, rebarbas, embalagens).
Jusante (downstream):
Distribuição das cadeiras por transportadoras parceiras.
Uso do produto: normalmente não emissivo direto, mas pode incluir manutenção e substituição de peças ao longo da vida útil.
Fim de vida: descarte das cadeiras e peças — aqui, a reciclabilidade e o retorno de materiais fazem diferença.
Gestão prática:
Fase 2 (PET → filamento): desenhar uma rota circular com rastreio das garrafas, eficiência da extrusora e padronização de qualidade.
Compras responsáveis: exigir dados de emissão de fornecedores estratégicos (filamentos, transporte), priorizar reciclados e logística consolidada.
Design para desmontagem: cadeiras pensadas para reparo e reciclagem no fim de vida.
Programa de take-back: recolher cadeiras usadas para recondicionamento ou reciclagem.
Observação importante: “Emissões evitadas” por substituir produtos mais intensivos podem ser reportadas à parte como informação complementar. No inventário GHG padrão, foque em emissões reais da cadeia.
Por que começar pequeno (e por que isso acelera)
Inventários “perfeitos” demais geralmente atrasam decisões. O que move a agulha é um V1 pragmático, com Escopos 1 e 2 completos e 3–5 categorias críticas do Escopo 3, do jeito mais rastreador possível.
Começar pequeno permite:
Priorização rápida: achar os 20% de fontes que respondem por 80% das emissões.
Foco em ROI: atacar medidas de eficiência com payback curto.
Engajamento da cadeia: convidar poucos fornecedores-chave para pilotos.
Melhoria contínua: cada ciclo anual refina dados, amplia categorias e aumenta a credibilidade.
Roteiro prático em 7 passos
Defina o escopo do projeto: entidades incluídas e fronteira organizacional (recomendo controle operacional).
Mapeie atividades por escopo e escolha o ano-base.
Colete dados (kWh, litros, km, kg, R$) e documente fontes e lacunas.
Aplique fatores de emissão confiáveis e calcule CO₂e.
Destaque “Top 5” fontes e proponha medidas de redução com custo/benefício.
Estruture governança: dono do processo, calendário, auditoria/asseguração e política de compras com critérios climáticos.
Reporte e engaje: mostre resultados em linguagem simples, com metas anuais e indicadores por unidade (ex.: tCO₂e por cadeira produzida).
O que (ainda) confunde muita gente — e como resolver
“Certificado verde zera meu Escopo 2?” Ele reduz o market-based se for válido e comprovado. Sempre reporte location-based também e explique a diferença.
“Preciso calcular tudo de Escopo 3 logo no primeiro ano?” Não. Comece pelos maiores blocos (insumos, transportes, capital fixo) e expanda.
“Posso ‘contar’ reciclagem de PET como redução automática?” Conte o que de fato mudou nas emissões do seu inventário. Emissões evitadas podem ser relatadas como informação adicional, com método transparente.
“GHG Protocol é o mesmo que crédito de carbono?” Não. O inventário mede emissões. Créditos são um mecanismo de compensação que pode ser usado depois de reduzir o que é viável.
Indicadores que ajudam a gestão (e a contar a história certa)
Intensidade: tCO₂e por cadeira produzida (ou por R$ de receita).
Taxa de renováveis no consumo elétrico.
% de fornecedores com dados primários.
% de resíduos recuperados/reciclados.
% de cadeiras recondicionadas via take-back.
Esses indicadores conectam clima com produtividade e qualidade operacional. É aí que o tema deixa de ser “custo ESG” para se tornar estratégia de eficiência e reputação.
Caso Roda Campeã: decisões melhores guiadas por três escopos
Decisão 1 — Energia: imprimir em 3D consome eletricidade. Ao medir Escopo 2, a equipe foca em eficiência de parâmetros de impressão, manutenção preventiva e migração para contratos de energia renovável. Resultado: menos emissão e menor conta no longo prazo.
Decisão 2 — Insumos e capital: ao incluir filamento e impressoras no Escopo 3, o projeto descobre que o desenho de produto (espessura, infill, suportes) pode reduzir massa sem perder desempenho. Menos material, menos transporte, menos emissão.
Decisão 3 — Logística solidária: consolidar entregas e acoplar cadeiras em rotas já existentes de parceiros sociais reduz km rodado de transportes terceirizados (Escopo 3 – categoria “Distribuição”), sem comprometer o prazo de doação.
Decisão 4 — Circularidade: o take-back para recondicionar cadeiras e reciclar peças fecha o ciclo de materiais. Além de reduzir Escopo 3 no fim de vida, reforça a confiança das famílias e facilita comprovação de impacto.
Glossário básico (para consulta rápida)
CO₂e: unidade que converte todos os GEE para “equivalente em CO₂”, usando fatores de potencial de aquecimento global (GWP).
GWP: índice que compara o efeito de aquecimento de um gás com o CO₂ em um horizonte de 100 anos.
Location-based (Escopo 2): emissões calculadas pela média da rede elétrica onde você está.
Market-based (Escopo 2): emissões calculadas pelo mix de contratos e instrumentos de energia que você compra.
Capital fixo (Escopo 3): impactos de máquinas e equipamentos usados pela empresa (ex.: impressoras 3D).
Materialidade: o que é relevante o suficiente para entrar no inventário, pelo tamanho e/ou risco reputacional.
Ano-base: ponto de partida para comparar evolução de emissões ao longo do tempo.
Dados primários: medidos pelo próprio emissor/fornecedor; secundários: estimativas e médias setoriais.
Take-back: programa de recolhimento de produtos no fim da vida útil para reuso/reciclagem.
Conclusão: três escopos, um inventário — e decisões melhores
Quando você enxerga onde estão as emissões, passa a decidir melhor e mais rápido. O GHG Protocol não é um fim em si; é um instrumento de gestão que conecta clima, eficiência e reputação.
Para o Roda Campeã, isso significa produzir cadeiras que devolvem autonomia às crianças com menos impacto, formar jovens em manufatura aditiva com consciência climática e provar, com números, que inclusão e economia circular podem andar juntas.
Comece pelo “mínimo viável” (Escopos 1 e 2 + categorias materiais do Escopo 3), conte a história com indicadores claros, e rode o ciclo de melhoria a cada ano. O resultado? Menos emissões, mais confiança e impacto social multiplicado.